Gralhas são aves muito barulhentas, na vida real. São inclusive usadas como metáfora para pessoas que falam demais.
Na vida dos livros, entretanto, costumam caracterizar-se por passar despercebidas, escondidas até que o olhar de um leitor mais implicante dê com alguma - ou algumas - delas. No mundo dos livros, os erros de tipografia que escapam da revisão são chamados de gralhas.
São o pesadelo dos escritores. Durante algum tempo fui dona de um exemplar de Doze noturnos da Holanda & O aeronauta, de Cecília Meireles, no qual ela, antes de ofertar o volume ao seu amigo Tasso da Silveira, corrigiu a mão todas as muitas gralhas que encontrou nessa primeira edição.
É também de Cecília o poema em que conheci uma das gralhas mais interessantes, pelas circunstâncias em que aconteceu. Explico.
Na primeira edição de Retrato natural, no belo e impressionante poema “O cavalo morto” (quem não leu, leia) lê-se o seguinte trecho:
Grãos de cristal rolavam pelo
seu flanco nítido; e algum vento
torcia nas crinas, pequeno,
leve arabesco, triste adorno,
- e movia a cauda ao cavalo morto.
O problema começa quando, em 1958, é lançada a primeira edição de sua Obra poética, pela Aguilar, belo volume, como sempre encadernado em couro verde, com título e autoria em dourado, folhas de papel bíblia e, infelizmente, alguns problemas de texto nos poemas.
Ali, o poema estava assim:
Grãos de cristal rolavam pelo
seu flanco nítido; e algum vento
torcia crinas, pequeno,
leve arabesco, triste adorno,
- e movia a cauda ao cavalo morto.
Se não vê diferença, saiba que não está sozinho: o revisor da Aguilar também não viu. Mas eu conto: no terceiro verso, foi suprimido o termo “nas”.
Mas o interessante mesmo começa agora. Pouco antes do dessa edição, Cecília foi convidada a gravar alguns de seu poemas para um disco do Selo Festa, que fez muitos lps com poetas declamando seus versos, um verdadeiro documento sonoro da nossa literatura.
Pois bem, lá foi Cecília para o estúdio, levando consigo alguns poemas selecionados. Entre eles, “O cavalo morto”.
É possível notar um certo nervosismo na leitura. Cecília lê com voz empostada, às vezes com um pouco de pressa. Acho que, por isso mesmo, alguns poucos anos depois, quando convidada para uma nova gravação, Cecília regravou alguns dos mesmos poemas. Entre eles, mais uma vez estava “O cavalo morto”.
Acontece que, entre um disco e outro, tinha sido publicada a Obra poética da Editora Aguilar e foi esse o volume escolhido por Cecília para a leitura dos poemas nesse segundo disco.
Como eu sei que ela usou essa edição? É possível ouvir, prestando muita atenção, os momentos em que ela vira as páginas, e todos esses momentos em que se ouve o som do papel coincidem com os cortes de página da edição Aguilar de 1958.
Quando Cecília chega a esse verso “defeituoso”, é possível notar que ela gagueja, sentindo que algo está errado ali, mas segue adiante.
Certamente ela teve o cuidado de, nas edições seguintes, pedir para que o erro fosse corrigido, mas então temos um novo acontecimento: não se sabe se por vontade de mexer no poema ou por falta de um exemplar da primeira edição para confrontar, o verso foi novamente alterado, ficando assim:
Grãos de cristal rolavam pelo
seu flanco nítido; e algum vento
torcia-lhes as crinas, pequeno,
leve arabesco, triste adorno,
- e movia a cauda ao cavalo morto.
Pronto, essa foi a versão que se cristalizou, diferente da primeira, mas certamente escolhida pela autora.
Eu, particularmente, ainda prefiro a versão original, em que o vento torcia um arabesco nas crinas do cavalo. Na versão definitiva, o vento torce as crinas do cavalo e forma um arabesco. Diferença sutil, mas significativa no território da poesia.
E você, qual versão prefere?
PS1 - Buscando pelos becos da internet, é possível encontrar as gravações. Eu tive acesso aos dois discos por uma generosidade do Alexandre Eulalio, meu querido professor, que me emprestou as preciosidades, com muitas recomendações de cuidado, e eu pude gravar ambos numa fita cassete, que depois digitalizei. Esse texto, aliás, é dedicado a ele, que era sempre tão atento às minúcias do mundo da literatura.
PS2 - Aqui estão os dois trechos e as capas dos discos, presentes para quem chegou ao final deste texto feito de coisas tão miúdas como gralhas tipográficas.
Primeira gravação:
Segunda gravação: